Se
Irmã Dulce fosse negra, seria santa?
Tiago
Silva de Freitas[1]
Trago, neste texto, uma breve reflexão interseccional entre racismo
e gênero, com ênfase na questão racial. Trata-se da nossa queridíssima e amada
Santa Dulce, o Anjo Bom da Bahia. Que mulher incrível! A ternura e a intrepidez
encarnadas no frágil corpo de uma alma gigantesca. Assim defino a idealizadora
do longevo e, queira Deus, perene, conjunto das Obras Sociais Irmã Dulce.
Estamos vivendo, por deliberação da Organização das Nações Unidas,
desde 2015 até 2024, a Década Afrodescedente, em homenagem a outro expoente da
contemporaneidade, Nelson Mandela. Considerando o fato de que, em 13 de março
de 2023, o falecimento de Santa Dulce completou 31 anos, pus-me a refletir: se
Irmã Dulce fosse negra, será que seria santa?
Antes de tudo, cumpre acentuar que o questionamento quanto à
santidade, tendo em vista a dimensão espiritual do adjetivo, em nenhum
milímetro está em cheque. De forma alguma! Não tenho qualquer penumbra de
dúvida quanto a sua elevação espiritual. Irmã Dulce foi e, para mim, crente na
sobreposição do espírito sobre a matéria, é um ser humano magnífico. O que está
em discussão é o seu título secular, na medida em que somos nós, leia-se, a
Santa Sé, quem delibera sobre o processo de canonização/santificação.
E por que tal dúvida? A resposta parece relativamente simples, mas,
para tanto, farei outras indagações. O que credenciou Irmã Dulce a tornar-se santa?
Apenas sua inconteste caridade, amor e generosidade para com os pobres,
desvalidos, despossuídos, alijados do mínimo necessário à dignidade humana,
fazendo, precisamente, o que aponta o Evangelho no que diz respeito à opção
pelos irmãos necessitados? Ou, para além disso, foi determinante o seu trânsito
entre as autoridades públicas de Salvador e da Bahia, a fim de que fosse
viabilizada a edificação dessa obra de fé e amor que ajudou/ajuda milhares de
pessoas mesmo após a sua morte, permitindo que a mãe dos pobres pudesse ser
vista e, por conseguinte, sua santidade reconhecida?
Com todas as vênias a quem possa compreender diferente, penso que a
última indagação traz em si a resposta. Acredito, respeitosamente, que outras
Irmãs Dulce negras existiram/existem, mas que, por mais intrepidez/altivez que
demonstrem, essas senhoras não conseguem edificar uma obra da magnitude do
nosso Anjo Bom, simplesmente porque a condição do racismo estrutural não lhes
confere a dignidade necessária nem sequer para serem ouvidas.
O racismo é horrível. A cada dia que passa, tenho mais certeza
disso, se é que é possível. Refletindo, causou-me tristeza concluir que, se
Irmã Dulce fosse negra, dificilmente seria santa e, talvez, nem soubéssemos da
sua existência...
[1] Doutorando em Jurisdição Constitucional e Novos Direitos pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Constituição, Estado e Direitos
Fundamentais/Limites do Discurso Jurídico pela UFBA. Especialista em Inclusão na
Educação nos Transtornos do Neurodesenvolvimento: autismo e suas comorbidades,
pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Especialista em
Ciências Criminais pela Fundação Faculdade de Direito da UFBA. Bacharel em
Direito pela UFBA. Professor da UFBA,
vinculado ao Departamento de Estudos Jurídicos Fundamentais (2017-2019).
Professor de pós-graduação e graduação na Bahia. Membro da Comissão de Direitos
Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Bahia, por quase dez anos.
Atualmente, é membro da Associação Brasileira de Estudos Africanos, membro do
Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), do Instituto Baiano de
Direito Processual Penal da Bahia (IBADPP) e da Associação Brasileira de
Juristas pela Democracia (ABJD). Palestrante. Historiador e advogado inscrito
na OAB/BA desde 2009. Email: tsfdireito@hotmail.com.
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