Prazer, ...
Jacqueline Beltrami de Jesus
Diretora do Grupo LJ, Sócia do Escritório De Jesus e
Beltrami Advogados Associados, Especialista em Compliance pela Universidade da
Pensilvânia no EUA e pela Dom Cabral. Secretária Geral da Comissão de Igualdade
Racial OAB/SP.
O despertador
toca. Sempre cedo demais. A primeira batalha do dia é contra o próprio corpo,
que pede mais cinco minutos, mas a vida não espera. Levanto. E dói. Mas ninguém
sabe.
Vivo com dores
que não sei de onde vêm. Talvez seja o peso da postura errada na cadeira.
Talvez seja o estresse acumulado nas vértebras, o desgaste de carregar tantas
versões de mim mesma. Talvez seja uma doença que ninguém descobriu. Talvez seja
só ser mulher.
Sou muitas.
Mulher, advogada, empresária, diretora, professora, palestrante, mãe de pet.
São tantos papéis que, às vezes, me pergunto se ainda existe um "eu"
por trás deles ou se me tornei apenas o reflexo das funções que desempenho.
"Você
precisa de um hobby", dizem. Como se houvesse tempo. Como se, entre
reuniões, decisões, planilhas, e-mails, sobrássemos nós. O que sobra é o
cansaço. E a culpa. Porque nos ensinaram que devemos dar conta de tudo – do
trabalho, da casa, das emoções, das expectativas. E, se algo escapa, sentimos
que falhamos.
Viver é um
check-list infinito. Ser mulher, então, é viver sob vigilância constante. O
peso da aparência, da conduta, da fala, da roupa, do tom de voz. Forte, mas não
dura. Inteligente, mas sem ser arrogante. Independente, mas sem incomodar.
Bonita, mas sem exagerar. Seja tudo, mas não demais.
E no meio dessa
maratona invisível, existe o medo. O medo que aprendemos a carregar desde
meninas. O medo que molda nossos passos e nossas escolhas. O medo que nos faz
atravessar a rua quando vemos um grupo de homens. O medo que nos faz enviar
mensagens de "cheguei" como se a porta de casa fosse uma linha de
chegada. O medo que nos torna estatística. O medo, companheiro eterno de nós
mulheres.
A cada notícia
de feminicídio, a cada caso de violência, vem o arrepio na espinha. Mais uma.
Poderia ser eu. Poderia ser qualquer uma de nós. Porque não importa o quão
forte sejamos, não importa quantas versões de nós mesmas existam, ainda somos
mulheres em um mundo que não nos protege. Ainda somos um pequeno fragmento
entre as vítimas.
E, mesmo assim,
seguimos. Porque precisamos. Porque há prazos, reuniões, contas a pagar, sonhos
a realizar. Porque em casa tem o Fred me esperando. Ah o Fred...
Quando abro a
porta e vejo seus olhos brilhantes, algo dentro de mim desacelera. Ele corre
até mim, feliz, sem saber do peso que carrego. Quando afundo os dedos no seu
pelo loirinho e macio, sinto a realidade se dissolver, ainda que por alguns
minutos. No olhar dele, encontro um tipo de paz que o mundo lá fora não me dá.
No carinho que trocamos, sei que, para ele, eu sou o mundo. E, para mim, ele é
o meu. E eu volto a ser a minha primeira versão, e lembro que ainda existo.
Ser mulher é
viver na corda bamba entre o medo e a coragem, entre a exaustão e a
resistência.
E amanhã o
despertador toca de novo. E eu levanto.
Prazer,
Jacqueline. Mulher.
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