Impostora, eu?!
Estava numa
vídeo-chamada com uma amiga. Ela passando por um momento difícil e eu tentando ajudá-la.
Ainda que não pudesse prestar relevante auxílio prático, pretendia ao menos
ouvi-la, partilhar minha solidariedade e insultar – juntamente com ela – o
verme em que se transformou seu ex-esposo.
Sim, mais um príncipe que virou sapo, ou que nunca chegou a ser príncipe
e assim foi classificado segundo as nossas lentes de tolo romantismo.
Falávamos sobre
relacionamentos, processos judiciais, providências cabíveis e, quando nos demos
conta, estávamos tagarelando sobre literatura, porque, afinal, é assim que nos
curamos (eu e ela), nos enchendo de livros.
Confessei-lhe
que havia terminado meu segundo romance e estava me organizando para publicá-lo.
Era provocou: “E aí, quando se hospeda num hotel já preenche o campo da profissão
como escritora?”. Eu disse, “Não, coloco servidora pública.” E caímos na risada.
Mas ela não se deu por satisfeita, mesmo estando num momento delicado (e muito
mais necessitada de forças do que eu) arrumou ânimo para me passar um pequeno
sermão sobre autoconfiança. Será que tenho síndrome da impostora? –
preocupei-me. Ela então me recomendou a escuta de um episódio do podcast
de Marcela Ceribelli (Bom dia, Obvius) e leituras adicionais.
Ouvi ao tal
podcast e calhou de, justamente no mesmo período, estar na leitura de A
ridícula ideia de nunca mais te ver, em que Rosa Monteiro, a propósito de
falar do sentimento de luto, inicia seu livro contando fatos curiosos sobre a
vida Marie Curie, a primeira mulher a ganhar um prêmio Nobel, na verdade dois (de
Física em 1903 e Química em 1911), e que, por mais de uma vez, duvidou da
própria capacidade e mérito diante da árida realidade de ser mulher no final do
Século XIX e início do Século XX.
Então duas
perguntas vieram-me à mente: como a mulher que acrescentou dois novos elementos
à tabela periódica (polônio e rádio) e que assentou bases teóricas que
propiciaram desde a criação da bomba atômica ao tratamento de radioterapia
contra o câncer pôde, por um segundo, duvidar de si? E por que, passado mais de
um século dos feitos de Madame Curie, seguimos padecendo do mesmo sentimento de
que não somos suficientemente adequadas?
Ao que parece a
síndrome da impostora – que na realidade não é uma síndrome, mas um fenômeno,
de acordo com um artigo da Harvard Business Review chamado “Pare de dizer às
mulheres que elas têm síndrome de impostora” – implica numa percepção depreciativa de si e
resulta numa sensação de que não somos suficientes ou merecedoras de algo e, portanto,
mais cedo ou mais tarde, todos irão descobrir a fraude em que nos transformamos,
como um segredo mal guardado e sempre a ponto de vir à tona.
Já conhecia o
conceito, não é de hoje que se fala no tema, no entanto, não havia dado muita
bola para à discussão, visto que não pensava ser atravessada por ela. Com anos
de terapia nas costas e uma autoestima que considero bem trabalhada, não me
ocorria que duvidasse levianamente de minhas habilidades e merecimentos. Mas
então por que evito denominar-me escritora quando já escrevi dois romances, por
que rechaço elogios destacando simpaticamente alguma debilidade do meu caráter
capaz de reequilibrar a balança para baixo, por que sinto meu coração parar por
breves instantes a cada vez que uma pessoa diz que está lendo algo meu, sempre
na expectativa de que pode, quem sabe,
não gostar? Qual seria o problema se não gostasse?
Levando o debate
para além do trabalho, qual mulher nunca se achou uma péssima mãe, uma esposa
medíocre, uma filha ingrata, uma amiga relapsa? Por que nós, mulheres, estamos
sempre nos sentindo inapropriadas, ao contrário dos homens que parecem estar
bem confortáveis na própria pele?
Não tenho uma
resposta científica para tantas questões, e quem dera a própria Marie Curie,
com sua mente brilhantemente cartesiana, tivesse deixado a pista em seus
diários e trabalhos acadêmicos, mas estou convicta de que esse fenômeno em muito
se relaciona com o nível irreal de perfeccionismo que se espera de uma mulher,
que deve trabalhar como se não tivesse filhos e cuidar dos filhos como se não
trabalhasse. Que necessita demonstrar o dobro de competência e dedicação que um
homem para provar que merece o mesmo cargo ou promoção.
E mais! Manter-se
num peso adequado a padrões de passarela. Dar-se ao respeito e não parecer
desfrutável (sem ser firme demais para não se converter em megera). Ambicionar
uma vida melhor, mas contentar-se com a família linda que Deus lhe deu e nunca,
em nenhuma hipótese, admitir que está realmente satisfeita consigo, porque
então será tida por presunçosa e, acredite em mim, ninguém tolera mulheres arrogantes.
Diante desta
longa lista de atributos que podem levar qualquer mulher a um futuro brilhante (ou
à depressão), penso que mais conveniente seria deixarmos de nos perguntar por
que nos sentimos inadequadas para nos questionar como-seria-possível-em-nome-de-Jesus
sentir-se adequada para qualquer tarefa ou função, mesmo as mais cotidianas,
dentro desse checklist infinito?
Suponho que a
solução ideal para o problema passe pela desconstrução do paradigma da mulher
perfeita (que não existe e nem existirá), provocando uma mudança coletiva e
duradoura para além do eu. Ou quem sabe, num plano mais íntimo, podemos
simplesmente abandonar a pretensão de sermos quem não somos, valorizando cada
pequena qualidade e mérito que efetivamente temos, nos amando verdadeira e
honestamente e alegrando-nos pelas ínfimas conquistas diárias, seja ela o
relatório impecável que foi entregue no prazo ou o ponto do feijão, que vez por
outra erro, deixando a panela chiar por mais tempo do que deveria, enquanto
lanço no sistema mais uma minuta (sim, as maravilhas do home office).
Apenas então, conscientes e admiradoras de quem de fato somos, poderemos deixar
de ter receio de que descubram a fraude que em que nos tornamos. Na verdade,
deveríamos ansiar por isso.
Escritora e autora do livro “Com amor,
Mamãe”
Acesse e confira em: https://www.editoramenteaberta.com.br/com-amor-mamae-livro
0 Comentários